segunda-feira, 23 de junho de 2025

Infinita Potencialidade

 Após dias, semanas (meses?) de caminhada incessante sustentada pelo meu próprio eu exterior, avistei uma fonte de luz. Uma luz pálida, efervescente, branca como uma névoa de manhã gelada de inverno que insiste em existir enquanto o calor domina o seu entorno. Me aproximando, percebi que se tratava de uma espécie de lago ou represa - que eu teria que atravessar.

Para a minha felicidade, às margens se encontrava um barco e ao barco se encontrava um aparente barqueiro. Seria ele o Caronte da minha viagem? O destino decidiria. A figura vestia trajes negros que cobriam todo seu corpo, exceto pelas mãos esqueléticas, e um capuz que fazia parte de todo o restante e ocultava a maior parte de sua face. Por mais que não possuísse pele no rosto, parecia ser bastante expressivo e, ao me aproximar, ele estendeu uma mão aberta com a palma para cima enquanto a outra se apoiava em o que parecia ser um longo remo de madeira.

"Duas moedas, por favor."

"Não tenho."

"Malditos despreparados. Não pensam em mais nada. Entra aí."

E, apoiando na lateral da embarcação, um barco longo de madeira preta, aparentemente enegrecida pelo tempo, saltei para dentro mas preferi me manter de pé para poder enxergar melhor enquanto questionava meu célebre anfitrião ao passo que ele remava tranquilamente em direção ao que parecia ser o centro daquele corpo d'água.

"Que lugar é este?"

"É o Lago da Infinita Potencialidade."

"E ele é infinito mesmo?"

"Não, mas para quem está no meio dele parece. De lá não dá para ver as bordas."

"E é pra lá que estamos indo?"

"Não sei. Você me diz. O que está fazendo aqui que não se preparou o suficiente nem mesmo para encontrar o barqueiro dos mortos?"

"Eu não sabia que minha jornada pelo âmago da existência me levaria à Morte de forma tão literal. Tenho matado, esmagado, aniquilado, ou meramente libertado, minhas pragas e minhas bestas mais antigas."

"Parece mais uma jornada através da Morte de si mesmo."

"Sim, e sou eu o único capaz de fazê-lo. Embora precise da ajuda de outros."

"Que, queira ou não, também são meras pragas e bestas de si mesmo."

"Eu não os chamaria assim."

Depois disso, e de um aparente suspiro de contentamento do barqueiro, continuamos navegando por algum tempo até avistar ao longe uma enorme e fina estrutura. Parecida com um poste acinzentado, se erguia até onde era possível enxergar, brotando de uma aparente ilha, muito diminuta, no que cogitei ser o centro daquele lago. Conforme tal pilar se aproximado, coloquei a mão direita sobre a sobrancelha como se ajudasse a entender melhor o que estava acontecendo. Aos poucos pude ver que havia uma figura inchada, desesperada, se agarrando ao pilar enquanto escorregava no que parecia ser uma espécie de areia movediça que tentava levá-la para dentro da água. E, observando mais de perto, ficou claro que quanto mais se esfregava no poste mais areia era desprendida e jogada aos seus pés, mantendo aquele ciclo sisífico que aparentava durar muito tempo.

Quanta energia gasta para manter aquele cenário. Quanto esforço para não chegar a lugar algum.

"Sabe, esse lago não foi sempre tão grande. Ele começou pequeno, do tamanho de uma poça." - Disse o capitão, de maneira certeira como aqueles que iniciam a contagem de uma História de eras passadas. "Porém, quanto mais ele evitou atravessá-lo, quanto mais ele se agarrou a essa coluna, mais ele aumentou - e junto aumentou o seu corpo, estufado pela própria água e pela própria areia que caem do pilar. E, quanto mais eles aumentaram, maior se tornou o risco de atravessá-lo."

Eu sabia o motivo daquilo. A promessa de Infinita Potencialidade, o Pilar da execução tardia, o porto seguro da fantasia da escolha. Quanto mais se agarra a esse poder, à sensação da possibilidade de escolha, à magnitude de poder ser aquilo que quiser, mais o tempo passa. E quanto mais eles passa, mais pesados ficam os grilhões e maior fica o medo de, ao decidir uma direção, sentir que é tarde demais para voltar. Ou que a costa fica tão longe que nunca chegará do outro lado. Ou que, depois que chegar, todas as outras possibilidades terão ficado para trás.

Como se não houvesse um mundo inteiro além da costa, por mais que obscurecido ao contrário das águas ofuscantes daquele Lago maldito. E como se, ao se agarrar às possibilidades, não estivesse evitando a conclusão de todas elas. Ao invés de se tornar forte, seja onde for, e realizar seu destino, seja aquele que escolher, morre a cada dia na Ilha do Desespero e não se torna nada.

"O que acredita que é a sua força, que o motiva a se agarrar, na verdade só o torna o mais fraco de todos. Olhando do lado de fora, a grandeza desse lago é um testemunho de sua fragilidade."

"Está na hora." - Retrucou o guia.

E, chegando o mais perto de poderíamos, coloquei um pé naquela areia movediça enquanto me mantinha firme com o outro no barco e, estendendo a Mão Esquerda, aquela que representa a escuridão do desconhecido, plantei a sua palma nas costas daquela criatura que se movia como uma minhoca fora da terra e uma sombra se espalhou sobre ela. Agora que seus motivos eram conhecidos, sua existência não fazia mais sentido. Sua jaula foi quebrada. Seu espírito de luta, ignóbil, foi massacrado. Seu dispendioso sofrimento acelerado foi despedaçado. Sua existência derreteu e se tornou parte do lago, ironicamente sendo desengolido pelas águas e se tornando fumaça - livre de qualquer conexão com aquela infinidade de possibilidades.

segunda-feira, 14 de abril de 2025

As 7 Chaves das 7 Correntes

 Em meus devaneios encontrei, num dos centros do infinito, no pilar brilhante de obsidiana retorcida e pontiaguda que se estende do poço obscuro das águas lamacentas da origem aos tetos - invisíveis de tão altos - do ego, a mácula assassina do flagelo; o Tormento imposto de forma sobreposta através dos grossos chicotes estirados, das densas vinhas entrelaçadas, dos pontiagudos espinhos emaranhados, das forças das brutas e pesadas correntes, das cordas retesadas e das mordaças atadas como que por manivelas intransigentes e inflexíveis, tormento que pesa enquanto corrói, enfraquece, cega e impede qualquer tipo de movimento ou sequer esperança de mudança. O caminho para o alto é reto, mas árvore alguma deve crescer como um poste.

Olhando ao redor, tais ferramentas de morte brotam da escuridão que, por mais que infinita, não permite o seu desbravamento através do mero olhar. É preciso conhecê-la para subjugá-la.

Por toda a vida, muitas vezes, são os objetivos que nos espantam. Não os objetivos em si, mas o potencial dos objetivos. De onde vem e para onde vão? É a ida sem volta? Ou é a parada sem ida? Escolha sufocante ou procrastino alucinante? Não importa.

A necessidade da busca, a necessidade da necessidade, a obrigação da obrigação, a responsabilidade imposta, a chama da vela mágica apagada, a natureza acorrentada e sequestrada, a definição externa do futuro, são todos planos. Planos de seres menores, porém numerosos e que em meus momentos iniciais, aproveitando-se de seu tamanho brevemente avantajado, ataram-me ao tronco e, como se fosse um elefante que se acostuma com a corda que após adulto não é capaz de lhe trazer nenhuma opressão a não ser a mental (e assim o prende), fui eu que empoderei ainda após o desenvolvimento do corpo humano - e da sua independência enquanto tal - as amarras criadas para me conter e não me deixar escapar do caminho reto, ordeiro, criado por aqueles tortos e desordeiros.

Desordeiros estes que não o são em poder do Caos ou da expansão ou da capacidade ou da amplitude, mas sim através da mera causalidade de suas tentativas fúteis de seguir um modelo inexistente que não se aplicou nem mesmo ao modelo que tentam desesperadamente seguir.

Afasto-me! Afasto-me desses grilhões não ao mover meus pés, mas ao expulsá-los da minha fronte, da minha existência, do meu centro, do âmago do meu ego.

Afasto-lhes pois eu não escolho um objetivo. Eu escolho um caminho. O Meu Próprio. E dele não fazem parte amarras que não foram colocadas, ou sequer aceitas, por mim mesmo. E, a partir de agora, eu não as aceito. Que na sua extensão o ranger de sua tensão e o chiar de sua resistência ecoem, que a explosão de seu arrebento seja ouvida pelas mãos malditas das almas que nos cercam. Que o vazio se torne repleto de barulho estrondoso e que o tronco da miséria humana cresça e se torne o caule arrebatador da existência poliforme. Com a chave da minha mente eu quebro a Sétima Corrente e me desvencilho de todos os anzóis da corrupção dos antepassados.

O Futuro é Meu. O Futuro é Nosso para criar e abraçar e abocanhar. Se a Magia é um alfabeto, que sejam estas as palavras que me libertam da magia de outrora.

"...he has not dedicated his life to reaching a pre-defined goal, but he has rather chosen a way of life he KNOWS he will enjoy. The goal is absolutely secondary: it is the functioning toward the goal which is important. And it seems almost ridiculous to say that a man MUST function in a pattern of his own choosing; for to let another man define your own goals is to give up one of the most meaningful aspects of life— the definitive act of will which makes a man an individual.

...you MUST FIND A NINTH PATH."

~H.S.Th

domingo, 6 de abril de 2025

Vozes do Tártaro

 Uma nova descensão. Um novo degrau abaixo. Mais um pouco de sombra - independente de qualquer luz superior.

A chama negra cria, mas também apresenta, imagens que passam de danças ululantes por ríspidas estátuas prostradas no que aparenta muros de pedra infinitamente concentrada, como um quadro que se faz diante da visão daquele que observar com o olhar de quem deseja aprender a entender.

A sabedoria do abismo é o micélio da criação, a semente da gênese de tudo que compõe aquilo que todos somos. Tudo que dele sai, tudo que nele cai, nos acompanha infinitamente. E é para ele que devemos nos voltar sempre que o rugido da vontade de contestar o que ali fez sua morada for ensurdecedor.

Pois é assim que se faz. O vale da Morte é feito de pequenas mortes não resolvidas que absorvem a alma de quem matam e se tornam cada vez mais aterradoras e inchadas, ocupando espaços e fazendo barulhos que não lhes pertencem.

Quando é impossível ignorar a sua existência, a inevitabilidade da escolha se faz presente diante dos nossos olhos como se fosse um espectro da mortalidade que nos rege. Com seus braços abertos, com seus olhos vendados e com sua forma decrepitamente plena e absolutamente ilibada em razão da veracidade incontestável da mensagem que representa, essa forma sepulcral porém vertiginosamente, assombrosamente, formidável, denota as únicas opções daqui em diante: navegar, descer as escadas até o âmago do próprio báratro das experiências e ideias, para confrontá-las de uma vez por todas (por enquanto) ou evitá-las mais uma última vez, abrindo fatalmente os portões para a eternidade das estrelas e dos planetas sombrios para além do véu que estende daqui até o além-vida.

Atingindo o precipício do matadouro de almas, face-a-face com o próprio destino revelado, o espelho negro que mostra onde cheguei e nada mais, é imprescindível seguir os conselhos da mão esquelética que escorrega do esteio desse submundo e mostra por onde caminhar para acarar aquilo que me canibaliza - e eu já sei o resultado dessa batalha infernal.

Encontrando através de caminhos ondulados o cerne da insatisfação, do sofrimento, da dúvida, do medo e do questionamento insensato e inútil, como sempre se mantém indubitável a fraqueza pálida da raiz desse sephiroth extorsor de vida. Tão evidente é a sua languidez que chega a ser repugnante o dano causado por tamanha e potente robustez de seus galhos.

Com um único olhar, a lembrança de que sua volúpia virulenta é alimentanda unicamente pela potência da afirmação e do questionamento que de mim mesmo brotam é suficiente para ceifar sua vida numa fração de segundo, aniquilando seu bulbo maldito e apodrecendo seus galhos de arbusto sem tronco como se eras fossem consumidas em um segundo.

Eu sei que a sua morte é incerta e que a ressurreição me aguarda, mas nesta batalha a vitória é (mais uma vez) minha. Aqui eu permaneço, aqui eu cultivo minha própria Qliphoth e fortaleço o exército da minha própria alma e da minha própria mente. Nos salões infinitos desse abismo eu faço minha morada, como andarilho das mãos esqueléticas extraio tudo aquilo que me é possível.

No Vale da Morte, Eu sou Seu Rei.

domingo, 16 de março de 2025

Piece by piece

 De pouco em pouco vou esvaziando.

Um pedaço aqui, outro ali. Um pedaço ali, aquele outro lá.

Desgaste. Contínuo. Esperança minada. Montanha-russa de devastação continuada.

Como uma torneira que você fecha acreditando que vai parar o fluxo mas não deixa de pingar e cuja água aos poucos vai encontrando seu caminho, abrindo-o até causar uma torrente nos momentos em que não se espera.

De um em um pedaço, o todo se esvazia de sentido. Por que? Para que? Qual o motivo? Qual o sentido? Qual o objetivo? Por que o objetivo? Faz sentido? Te causa alguma coisa?

Existe tal motivação? Parece que eu já a senti, mas ao mesmo parece que nunca tive uma convicção tão grande quanto vejo por aí?

Estaria eu refletindo além do necessário ou realmente não encontro nada que realmente faça sentido PARA MIM?

Além disso, problemas passados.

Que assim seja. Não é aqui que vou resolver, por mais que ajude.

terça-feira, 17 de dezembro de 2024

Relações interpessoais

 É sempre tão difícil. Por mais que eu conheça a teoria, as ideias, as palavras, a ciência, as variáveis e até os personagens, é sempre tão difícil. Às vezes não parece, mas parece que quase sempre é. Pelo menos quando falamos de forma individual e extensa.

O passado é estranho. Refletindo, agora, parece-me que nem sempre foi. Ou nem com todo mundo. Mas há categorias de pessoas com as quais sempre é. Seriam aqueles que mais admiro(ei)? Seriam aquelas mais enigmáticas? Seriam aquelas onde sinto que tenho mais a perder em forma de potencial (essa ideia que ainda se agarra como um parasita)?

Às vezes penso que isto é algo exclusivo, mas talvez não seja. Porém, não é tão comum porque é algo sempre percebido. Vai saber. Hiperanálise sempre nos decepciona e martiriza, nesses momentos.

Vergonha acumulada às vezes se transforma em compaixão pelo diferente, pelo doente, pelo transtornado. Mas não será isto um mero mecanismo de defesa? Uma forma de procurar um culpado externo? Uma parte da eterna fuga da responsabilidade? Não seria isto mais um sintoma do próprio problema? Se sim, está aí o próprio Ouroboros.

De qualquer forma, é tão difícil de lidar. Sempre foi e às vezes parece que sempre será. Medo, falta de identificação. Expectativas boas e ruins. Paralisia.

Ah, se eu soubesse. Mas é aí que mora a graça de vida. Quase nunca se sabe.

E se, sabendo, quase sempre surge um arrependimento questionável, por que não tentar sem saber?

Sei lá. É tão difícil.

domingo, 8 de dezembro de 2024

Fé inabalável

 Sua fé era tamanha que o senhor seu deus só poderia recompensá-la de uma forma: com a morte. Foi pensando nele que viveram a totalidade de suas vidas. Foi no momento em que a linha seria fatiada e o portal do desconhecido atravessado. Um a um eles foram ceifados: a maioria pela praga, mas muitos também pelos diversos outros motivos que levam humanas todos os dias.

Engraçado que não só eles como milhões de outras pessoas, com crenças bem menores, também foram levadas em mesma proporção e pelas mesmas causas. O hilário é que, a única diferença, estava no sentido atribuído por cada um. Uma mera forma de pensar mudava tanto a situação que pareciam estar passando por coisas extremamente diferentes.

Mas é assim com toda a vida.

Ideais, fundamentos e moralismos são como cores, sabores, cheiros e texturas: a vida possui substância e características inerentes, mas o tempero, a forma de preparo e as preferências individuais de cada um são o que realmente moldam a experiência de quem a vive.

Bem e mal, viver e morrer: para uns são conceitos fugidios além da vida e da morte, enquanto que para outros só existem a vida e a morte e delas nada foge.

Por bem ou por mal, é aí que mora a graça de ser humano. Nas variações, nas diferenças, nos temperos. E na coleção que fazemos deles e nos que deixamos para trás. Evoluímos tanto no decorrer dos milênios como no decorrer de horas, minutos, dias, anos, meses ou textos.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2024

Você vem

 Você vem rastejando de forma ritmada, ululante, fluida. Como uma serpente no escuro, sem começo e sem fim. Somente corpo. Sua aparência é enorme, como o tronco de uma árvore centenária que se move em homogeneidade e sufoca a mente com uma tamanha imposição trévida em meio ao corredor assombroso e de certa forma indefinido.

A luz é tão pouco que sinto como se estivesse observando uma foto; que se movimenta em tal, singular, destreza, que me confunde como que uma ilusão de ótica.

Ao ponto que percebo seus avanços, já é tarde demais. O peso sufoca qualquer semblante de esperança; e a fulgura de um campo amplo, ou de uma estrada infinita, se fecham em um instante. Instante este em que somos consumidos por uma prisão férrea e orgânica, acachapante e impositiva mas de forma além da compreensão ou da razão sórdida. É meramente intuitiva, parte essencial da humanidade. Um meio de defesa. Uma jaula não para me prender, mas para me segurar.

"Suas raízes se desprendem do chão conforme são macetadas e avacalhadas, avassaladas pelos dias, meses, anos e acontecimentos. Aqui eu te prendo, te enjaulo, te incorporo, te amasso e te assento novamente. Uma planta transplantada é preciso sê-la à força. Se o solo em que está é pobre, ou se passam por ela e a atacam a ponto de colocarem em risco a sua vida, é mais que necessário arrastá-la para onde esteja a salvo. E dali não tirá-la nem deixá-la se arrancar. É ali que ela se fincará novamente na fundação da Terra e apontará, ao mesmo passo, para os Céus e para os Infernos. Assim como em cima, também embaixo. Um sozinho é a morte. Os dois juntos, e tem uma vida."

De soslaio percebo, da única forma que consigo observar enquanto me afundo e me dou à força, e não à luz, que o movimento continua enquanto eu me absorvo em minha própria existência para mais uma vez me aterrar nas bases desse monumento deificante. Demiurgo, eu sou tanto aquele que é pisado e deformado quanto aquele que pisa e deforma. Sob meus próprios pés, sob meu corpo de serpente, eu me formo como avatar de mim mesmo.